"Vers un nouvel humanisme

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Je crois entoi, Homme...

Le préjugé de race...

Comprendre etoimer..."

Franz Fannon

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A MENINA VITÓRIA de ARNALDO SANTOS (fragmento)

Transferiram-no no meio do ano letivo para o colégio do Pucha Beatas, por causa dos piolhos da Escola 8 e da prosódia, em que os professores o achavam muito fraco.

O Sr. Sílvio Marques, embora pouco exigente consigo em relação à pronúncia – trocava amiúde os vv pelos bb -, era no entanto muito cuidadoso a fechar as vogais. Ralhava severamente o Gigi sempre que lhe ouvisse algum desconchavo, ou então abria-lhe muito os olhos, o que significava o mesmo. Também os amigos dele, aos domingos, debaixo da mulembeira e entre uma ou outra jogada de sueca, comentavam as incorreções do Gigi. E sibilavam (alguns eram da Beira Alta), lamentando que a pronúncia do garoto se estragava, que era preciso afasta-lo da companhia dos criados e dos colegas dos musseques. Todos concordavam que era pena, porque ele já se podia considerar como um branco, embora D. Angelina fosse mulata, mas enfim... era senhora de princípios. O Sr. Sílvio ouvia-os atento, w considerava conscienciosamente a crítica, porque afinal se tratava do futuro do seu secretário, como dizia referindo-se ao filho.

Assim, embora com sacrifício, porque o colégio era caro, a transferência teve que se fazer. Mas valia a pena, anunciara a mão às vizinhas. “Aqueles meninos muito arranjadinhos, levados pela mão dos criados, e alguns até de carro...! Que diferença!” – exclamava, não escondendo a vaidade, no dia em que o levou ao colégio.

Gigi ganhou roupa nova, uma sacola bordada e muitos conselhos de D. Angelina, que se afligia com a sua aparência. Mas da mudança mesmo o que o Gigi mais gostou foi dos passeios na moto com carro lateral, em que o pai o levava ao colégio. O assento era tão baixo que, pelo trajeto, ele podia apanhar pequenos tufos de capim. Isso passou a ser a sua única alegria, porque o Gigi estranhou o colégio.

A professora da 3ª classe, a menina Vitória, era uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. /Renovava o pó-de-arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas.

Olhou-o com desconfiança e depois do primeiro exame mandou-o para uma carteira do fundo da aula, junto de um menino com cara de puco, a quem chamavam cafuzo, por ser muito escuro. Mas o menino cafuzo chamava-se Matoso, o que, de início, pareceu ao Gigi insuficiente para justificar o seu mutismo. Vergado na cadeira, não tirava os olhos do livro, nem mesmo quando a menina Vitória se referia a ele, quase sempre com desprezo, ao recriminar outro aluno. “Pareces o Matoso a falar...”, “Sujas a bata como o Matoso...”, “Cheiras a Matoso...” – e ele guardava-se cada vez mais à carteira, transido por aqueles comentários impiedosos.

Fora também transferido de Escola 8 e, mesmo no dia da apresentação, a menina Vitória não escondera a sua má impressão, com alusões veladas à sua bata de brim grosso. Porém o seu azedume cresceu quando, tempos depois, o Matoso lhe responde distraidamente em quimbundo. “O quê, julgas que eu sou da tua laia...!?” Daí por diante o seu nome era jogado pela aula com crueza, criando um símbolo maldito, que o Gigi mais tarde, atemorizado, reconheceu facilmente. Era uma imagem familiar. Estava muito perto de si e dos seus companheiros do Kinaxixe. Mas por que ele irritava tanto a professora e lhe merecia aquela troça? O Gigi retraiu-se.

Olhava os colegas de soslaio, inseguro. Eles iriam troçar também dele, da sua bata modesta de brim, dos seus sapatos puídos, quase rotos? E não respondia quando da menina Vitória o chamava à lição, receando um despropósito que o identificasse com o Matoso. “Vêm para aqui neste estado e depois querem milagres!” – suspirava a professora. Era com certeza do método de ensino da Escola 8, ou da sua influência perniciosa. Mas tolerava-o lá no fundo da aula. E o Gigi diminuía-se ainda mais para não se tornar notado, esforçando-se num mimetismo impotente por imitar os gestos dos meninos da baixa. Tenho que ser como eles, refletia no recreio, afastando-se dos alunos da 4ª classe, que eram, na maioria, os seus companheiros de vadiação do Kinaxixe. Ficava então a jogar os estames dos botões que caíam das acácias, e reprimia a vontade de trepar ao cima delas, para colher os botões compridos de estames longos e curvos, que venciam todos os outros.

Nas suas redações vagueava então tímido sobre as coisas, com medo de poisar nelas, decorava nomes das árvores, das aves, dos jogos descritos no seu livro de leitura. Procurava esquecer o colorido vivo das penas dos maracachões, dos gungos, dos rabos-de-junco que ele perseguia na floresta e cujo canto escutava. Imitava passivamente a prosa certinha do gosto da menina Vitória. Esvaziava-a das pequeninas realidades insignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências de menino livre, agora proibidas e imprestáveis.

Quando o Matoso lia submisso a sua redação, onde pintassilgos gorjeavam e debicavam cerejas amarelas (o Matoso explicara-lhe num recreio que as cerejas eram as gajajas do puto), intimamente o Gigi perguntava-se onde é que ele tinha descoberto tudo aquilo. “Cada vez pior!...” – rezingava a menina Vitória, que não se compadecia com os enganos. E continuava a erguer à volta do Matoso, implacavelmente, um círculo intransponível de desprezo, onde ele já não se debatia, nem chorava. Apenas no rosto as suas feições endureciam sob a pressão dos maxilares contraídos. Exasperava-a.

Tenho que anda pouco com ele, pensava preocupado o Gigi. A professora pode virar-se contra mim. E fugia, afastava-se também da sua companhia, deixando-o abatido, solitário, dentro das suas ruínas. Tinha medo de enfrenta-la. Precisava de esconder o segredo ilegítimo do seu passado igual. Precisava de o dissimular para que não fosse destruído. “Mulatona... nem cabrita é...” – insultava-a furioso à tardinha quando regressava a casa. E até a noite, descalço, gritava pelo bairro junto dos seus camaradas do Kinaxixe a sua juventude ameaçada, correndo, bassulando, assaltando as quitandeiras de quitetas.

“Restos dos maus hábitos...” – lamentava-se D. Angelina. A gradual sisudez começava a animá-la e por isso não compreendia aquelas súbitas irrupções de revolta.. “mas... o colégio leva-o à ordem! – confiava. Realmente a menina Vitória, como uma jibóia enlaçada em cima da árvore, vigiava-lhe os mais pequenos movimentos.

- Higino, a tua redação?

O Gigi naquele dia estava contente com o seu trabalho. O tema era sobre uma figura importante do governo e ele não esquecera os adjetivos mais expressivos que na véspera a professora tinha proferido.

Embora confiante, o Gigi estremeceu ao ouvir o seu nome. Que diria ela, pensava agitado, depois de lhe ter estendido timidamente o caderno.

- Com que então pretender brincar comigo...? – ela falava-lhe friamente...

Gigi empalideceu. Alguma coisa tinha falhado. Mas o que é que poderia ter sido? Estavam lá todos os louvores pelas pontes e estradas que ele construíra. Ter-se-ia esquecido de algum fato importante? Olhou o caderno que ela lhe devolvera, aberto nas mãos, mas não distinguiu as letras subitamente misturadas.

A acusação, porém, veio sem tardar, inexorável, imprevisível. Como é que ele se atrevera a trata-lo por tu! Como é que ele tivera o arrojo de o nomear com um simples artigo definido!?

- Ouve lá... tu julgas que ele anda sujo e roto como tu, e como funje na sanzala...?

- Não... não... não é... – gemia o Gigi, desnorteado, tentando estancar o fluxo daquelas insinuações que ele temia.

De repente exibia-se aos olhos dos colegas deformado como uma caricatura, o compromisso irrecusável que circulava no seu sangue e que até ali inutilmente escondera. Uma vaga de calor inundou-lhe o rosto e invadiu-o levemente uma sensação entorpecente. Os seus ombros encurvaram-se. Sentiu-se muito fraco. Já nada tinha que disfarçar, mas estava triste perante a luta que pressentia. Mas porque, porque que ela, logo ela, o queria humilhar? Ela que tinha carapinha. Ela que era filha de uma negra, pensou com furor. Os seus músculos crisparam-se e o caderno começou a amarrotar-se-lhe nas mãos. Depois mal sentiu a violência da palmatória. Só nas faces a queimadura viva da humilhação, só nos ombros a responsabilidade da sua condição que ele não tinha culpa, mas que queria aceitar mesmo dolorosa como as pulsações que lhe ressoavam nas palmas das mãos inchadas.

E na carteira chorou. Chorou de raiva, da dor que lhe nascia da piedade dos colegas e da vergonha de não poder esconder a sua angústia, com os olhos secos, enxutos, e orgulhosamente raiados de sangue, como os do Matoso.



(Kinaxixe e outras prosas)

Um comentário:

  1. Esse conto é lindo. Só nos remete ao quanto a África - ANGOLA, nesse caso - sofreu com o preconceito, com a opressão, com o colonialismo.

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